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APRECIAÇÕES CRÍTICAS
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TARSILA DO AMARAL TARSILA

 

            Tarsila do Amaral (1886-1973) deixou gravada, em cerca de uma década, trajetória das mais importantes dentro do desenho e pintura brasileiros. Em verdade, menos de uma década, que começaria em 1922-23 e terminaria em 1929. Esta data, emblemática para o Brasil e para o mundo. Para Tarsila também: não só marca a grande crise financeiro-econômica que grassou o mundo a partir do crash da Bolsa de Valores de Nova York, mas a derrocada do setor cafeeiro paulista/brasileiro.
            Tarsila e a travessia do deserto de: 1930 até à morte, em janeiro de 1973, um ano depois do festejado cinqüentenário da Semana de Arte Moderna, da qual ela nem participou, mas, sendo uma importante modernista do primeiro momento, tomou parte - mesmo em cadeira-de-rodas - das comemorações. Uma que outra obra é sempre evocada depois de 1929 - OPERÁRIOS (1933, ano mais brabo da Grande Depressão), por exemplo - mas nada se compara à sua produção dos anos 20. Parece que, de par com a perda do dinheiro e, gradativamente, da beleza, Tarsila perdeu o ímpeto criativo, sem nunca ter abandonado a arte: prática artística e exercício crítico…
            Bem, em 1928 (11 de janeiro), Tarsila pintou aquele que seria o quadro mais famoso da Arte Moderna brasileira: ABAPORU (= homem que come, em tupi). Trata-se de uma pintura não muito grande: 85 X 73 cm, óleo sobre tela e que hoje faz parte da coleção na Argentina (foi arrematada num leilão, em Nova York, por cerca de um milhão e trezentos mil dólares, dinheiro que milionários brasileiros não quiseram dispender - e tudo indica que não haverá mais chance de reavermos a obra, fundamental para a compreensão de nosso Modernismo, que se encontra integrada ao acervo do MALBA, Coleção Costantini, Buenos Aires).
            Consta que a obra foi feita para presentear Oswald de Andrade - seu mais famoso marido - pelo aniversário. A partir disto, teria inspirado o movimento da Antropofagia, cujo manifesto (Manifesto Antropófago) saiu publicado em maio de 1928), na REVISTA DE ANTROPOFAGIA 1. Inaugura Tarsila, também, sua fase antropofágica - antropófaga que já era, desde que que ingeriu/digeriu a lição cubista que norteou sua leitura do país, na fase que levou o nome de Pau-Brasil. Também fase de Oswald, que escreveu o brasílico-não-nacionalista Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em 1924 e que inaugura a re-descoberta do Brasil pelos brasileiros do Modernismo.
            Porém, A NEGRA, de 1923, pintado em Paris, antecipava aspectos da Antropofagia, como A CAIPIRINHA, do mesmo ano, já dava o tom Pau-Brasil de geometrização via Cubismo, mas como que retornando aos conselhos de Paul Cézanne, no que respeita à redução das formas a cones, cilindros, esferas. Tarsila volta os olhos-cérebro para a fonte. Na questão do Cubismo, por exemplo, penso que Tarsila fez até o caminho inverso: do Cubismo, chegou até Cézanne, em sua geometrização/simplificação de formas, na dita fase Pau-Brasil (numa de suas voltas da França, completando tardiamente sua formação de pintora, com mestres em Paris, ligados ao Cubismo, disse que a mencionada escola era uma espécie de exercício militar, pelo qual todo artista deveria passar). Não repetiu o Cubismo dos mestres. Antes, digeriu a lição e desenvolveu uma obra com um considerável grau de originalidade, como apregoaria mais tarde, no famoso MANIFESTO ANTROPÓFAGO, Oswald de Andrade: Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do Antropófago. Tupy or not Tupy: that's the question.
            Pau-Brasil é fase resultante da re-descoberta do Brasil, cujo fato motivador maior foram: viagens ao Rio de Janeiro/carnaval e a viagem famosa a Minas Gerais - às cidades históricas - 1924, com Blaise Cendrars acompanhando e cujo documento-marco é já mencionado o MANIFESTO DA POESIA PAU-BRASIL, de Oswald de Andrade ("A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. Como falamos. Como somos. A contribuição milionária de todos os erros". E isto pode ser passado tranqüilamente para o âmbito da pintura…). É de Tarsila a capa do livro do suíço-francês, do mesmo ano de 1924 (Paris, Au Sans Pareil): Feuilles de route . I. le Formose: magnífico desenho de A NEGRA.
            Na fase que tem início a partir de 1928, encontramos Tarsila com alguma influência da Metafísica/Surrealismo (sem os exageros deste) , mas tão melhor que a produção pictórica do Surrealismo (salvo uma ou outra obra dessa escola), dada a parcimônia na utilização de recursos gráficos e pictóricos. É antes a coisa do onírico que o do malabarismo/virtuosismo e metáforas retumbantes de alguns representantes da Escola de Breton. Veja-se o espantoso O SAPO, 1928, coleção do MAB-FAAP: sapo solitário sob um arco: claridade; sobre o arco um céu escuro carregado; cactus com base na pedra do cometimento arquitetônico que lembra os arcos romanos da arquitetura da metafísica de De Chirico.
            Como Tarsila foi grande naquilo em que foi grande! Os anos 20: tudo se resume praticamente, como já disseram alguns estudiosos - aos anos 20. Para Oswald, também, em grande parte. 
             Mas, voltemos ao ABAPORU, quadro que já voltou, pelo menos três vezes ao Brasil, para participar de exposições - agora, para a exposição DA ANTROPOFAGIA A BRASÍLIA, na FAAP - 1ª dez. 2002 a  2 de março de 2003). O quadro mais famoso de nossa pintura moderna (e Tarsila muito contribuiu para a formação de uma "visualidade brasílica"), ABAPORU lembra, dada a sua atmosfera estranha e onírica, a Pintura Metafísica e o Surrealismo, informações que Tarsila possuía, hauridas na fonte: a Europa que ela freqüentava (era detentora, junto com Oswald de Andrade, de um dos melhores trabalhos da melhor fase de Giorgio De Chirico - ENIGMA DE UM DIA, 1914, hoje parte integrante do acervo do MAC-USP - e, em Paris, teve conhecimento da origem e desenvolvimento do Surrealismo, juntamente com a teoria que o motivou - Freud por detrás).
            Mas Tarsila é de uma economia de meios admirável; parcimoniosa quanto à utilização de recursos. No ABAPORU predomina a forma cilíndrica, seguida da esférica e da cônica, que é insinuada. Sol, céu, chão. figura humana e cactus. As formas que definem o humano/humanóide não diferem essencialmente das que definem o vegetal. Cores: amarelo, laranja, azul, verde o que, inevitavelmente remete ao Brasil, às cores convencionais do nosso País. Uma leitura, um retrato do Brasil, diria. Uma figura de cabeça mínima, pé e mão direitos enormes, encontra-se sentada e é como que abordada por uma câmera/olho em contre-plongée. Daí, deformações decorrentes e a cabeça minúscula, que, apoiada no braço esquerdo, faz lembrar  O Pensador, de Rodin - referência óbvia (citação como dizem). Porém, o pensador de um pensar pequeno: uma pessoa que pensa, mas pensa pequeno, que está a matutar. Um país que pensa pequeno? Sentada num chão que indicia um precipício e que faz simetria com as costas da figura. Um país à beira do precipício? Uma ante-visão do desastre de 1929 que, afetando gravemente o setor cafeeiro, afetaria fatalmente Tarsila? Premonição? O fundo: um cenário com sol/olho/rodela de laranja que fita antes o espectador: não é a fonte de luz que inside sobre a figura, sobre o cactus, que projeta uma quase-sombra no céu-cenário, ou uma espécie de aura. Nenhum compromisso com uma suposta verdade, sequer com a verossimilhança. Um máximo de informação com um mínimo de recursos gráficos/pictóricos.
            Noutros quadros da mesma fase, a mesma parcimônia e a mesma grandeza, mas ABAPORU - humanóide-cabeça-de-tênia - permanece insuperável e imbatível (nem a própria pintora conseguiu igualar esse feito em pinturas posteriores, a propóisito de Antropofagia) pela sua estranheza e beleza, extraídas daquilo que poderia ser o mais feio. Admirável é a palavra!
            Como Santos-Dumont e Oswald, Tarsila tinha tudo e mais um pouco para ser uma libélula deslumbrada. Porém - como eles - portadora de um cérebro, possuía um projeto para a sua arte. Pensava o Brasil e um Brasil integrado ao mundo, cosmopolita que era. O resto era lamentar. Os anos vinte se constituíram em sua glória e o resto foram tentativas e lembranças. Admirada e admirável.  Salve, salve Tarsila, a do Amaral! OMAR KHOURI

 

 

 


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