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COMUNICAÇÃO
nomuque.net

MAIS QUE O MELHOR : O EXTRAORDINÁRIO

 

            Já foi dito nesta coluna, a propósito das obras-de-arte, que a única maneira de separarmos o joio do trigo é comparando: somente por meio da comparação é poderemos dizer se uma obra é superior à outra (e aqui estaremos falando em qualidade) e o porquê. Ezra Pound bateu nesta tecla em textos como o do ABC OF READING (traduzido como ABC DA LITERATURA), dos anos 30 do século passado. O que resiste a comparações? Em última instância, o que resiste é o que interessa para o patrimônio cultural, o qual não chega a excluir o que é considerado menor. E isto é bom, porque todo juízo está sujeito a erros dadas as conjunturas e as idiossincrasias: o "menor" até poderá ser o "maior" no futuro.
            Tenho a impressão de que, em qualquer tempo, salvo o critério ideológico (por sinal, o pior e quase sempre odioso), as pessoas sempre compararam: da culinária à arte da poesia comparamos e selecionamos. Aprendemos a discernir, que é no que se constitui o exercício da crítica (só que as coisas que envolvem os sentidos do tato, paladar e olfato ficam num plano secundário. Privilegiados são os sentidos da visão e audição, os quais propiciam verdadeiros códigos, possuindo até verbos bem especializados, não se limitando ao verbo SENTIR, pura e simplesmente. Dos cinco sentidos - e deve haver um sexto! - a visão é o mais considerado, já que cerca de 70% do que percebemos, percebemos através da visão. Porém, mesmo nos outros campos, comparamos: "isto é mais gostoso que aquilo", "… possui uma fragrância melhor que …", "… é mais macio que…").
            Falando em comparação, não à toa Safo, poeta grega do Período Arcaico, a personificação da Lírica, era tida como uma semi-deusa por aqueles que de fato sacavam de Poesia: de Alceu e Platão a Catulo, entre  outros (quase nada sobrou de sua obra, em parte deliberadamente destruída. Fragmentos. Um poema na íntegra: o célebre ODE A AFRODITE. No mais, cacos… preciosos cacos. Pound chegou a dizer que havia sobrado tão pouco do que ela havia feito, que tanto fazia lê-la como não lê-la, mas que, lendo, a pessoa veria que não haveria nada melhor…! que a tal ODE, por exemplo).
            Certos artistas são tão grandes, que acabam apequenando outros, que não deixam de ter as suas qualidades. O primeiro exemplo que me ocorre é do universo "fauve" (o Fauvismo se constituiu na versão francesa do Expressionismo e o nome foi dado pejorativamente à tendência. "Fauve", em francês= fera, já que as cores eram utilizadas puras pelos pintores, nuas e cruas, sem meios-tons) que, advindo principalmente da obra de Paul Gauguin, contou com ótimos pintores, só que a presença de Henri Matisse foi tão grandiosa, que acabou amesquinhando a produção dos outros.
            Todo mundo ficou secundário perto de Matisse, um dos maiores pintores de todos os tempos, verdadeiramente um colorista. Matisse era o pintor que fazia Picasso repensar os próprios trabalhos, era o pintor de quem Picasso tinha uma certa inveja, por quem nutria a maior das admirações: era a sua máxima referência contemporânea. Admiração velada, já que o espanhol nunca se conteve em sua vaidade extrema.
            Há até quem diga ser Matisse e não Picasso o maior pintor do século XX, embora a única obra insubstituível para a compreensão da pintura moderna seja o LES DEMOISELLES D'AVIGNON, do pintor de Málaga. Picasso foi também um gigante, mas dá para compreender o pensamento de Wendy Beckett , autora de uma interessante HISTÓRIA DA PINTURA: grande pintor, Picasso fui fundamentalmente um gráfico, com incursões importantes em outros universos. Picasso, no desenho-pintura, é o inventor, por excelência e provocou mais desdobramentos na Arte, que Matisse. Até dentro do Cubismo o seu gigantismo apequena os demais, mesmo Georges Braque, co-criador da tendência do começo do século XX, que foi realmente revolucionária. Basta falar em quebra do paradigma da representação pictórica provocada pelo Cubismo, na colagem e na assemblage.
            Acontece que, numa mais ou menos recente pesquisa feita em Londres (uma aluna da FAAP me trouxe a informação que obteve na Internet) sobre as obras mais lembradas do 1º tempo modernista, a que apareceu em primeiro lugar foi a FONTE (de 1917: um urinol masculino fabricado em série, o mais famoso ready-made) de Marcel Duchamp! É claro que Picasso apareceu como autor de duas dentre os cinco  primeiras obras apontadas.
            E por falar em Duchamp, o Marcel de que já tratei neste espaço há alguns anos, sua contribuição foi tão grande para a Arte do século XX, que seus dois irmãos mais velhos, excelentes artistas - Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon - ficaram sendo apenas irmãos do autor do GRANDE VIDRO, ou se situaram na rabeira do movimento cubista. Duchamp fica como uma excepcional singularidade - muito embora dada - na Arte do século XX: está por detrás de toda obra de artista que, de fato, pense a Arte e sua influência adentra o século XXI.
            No Brasil, Machado de Assis foi um desses valores extraordinários na arte da narrativa ficcional. Ao lado de sua obra, qualquer contemporâneo fica menor, mesmo sendo muito bom, porque Machado - como até outro dia falavam nossos pais escolarizados e habituados às expressões francesas - era "hors-concours". Alguns de seus contos assombram os que apreciam a arte do narrar e cinco de seus romances ultrapassam o limite da excelência e adentram o campo das excepcionalidades, sendo contribuições para a Humanidade. O terráqueo Machado de Assis seria um grande escritor em qualquer literatura: é um valor mundial.
            Na guerra - mais para nós que para os de fora - que se trava pela primazia na aviação, o nosso Santos-Dumont desponta como um gênio. O baixinho (le petit Santos) foi um grande inventor e tendo sido, de fato, o primeiro a fazer o-mais-pesado-que-o-ar levantar vôo com seus próprios meios. Santos-Dumont foi um grande designer, como já notou Décio Pignatari: o 14 Bis, o Demoiselle (precursor dos ultra-leves): taquara e seda japonesa impermeabilizada! Neste 2006, 100 anos do vôo público do 14 Bis, documentado pelo cinema. Santos-Dumont: extraordinário fazedor.
            Concretismo: o primeiro movimento internacional de poesia (já existiam os Concretismos nas Artes Plásticas e na Música) co-inventado por brasileiros. Nunca tivemos um grupo de valores tão excepcionais no Brasil: dos iniciais Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, juntaram-se Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald e mais Edgard Braga e Pedro Xisto de Carvalho. Produziram uma obra genial, que acabou por apequenar obras até boas de contemporâneos. A excelência do grupo de paulistas (que comportou outras procedências) feriu suscetibilidades e provocou rompimento, já nos anos 50: a do  Neo-Concretismo, liderado pelo poeta e crítico Ferreira Gullar, maranhense radicado no Rio de Janeiro.
            Para mim, mais do que preocupações formais (os "paulistas" eram acusados de extremo racionalismo, cerebralismo frio etc. Tenho para mim que Ferreira Gullar, com toda sua desmedida vaidade, não agüentaria as presenças artísticas e teóricas dos irmãos Campos e de Décio Pignatari. No Rio ele comandaria, como comandou, até que se desinteressou da Arte Construtiva. Era uma questão de política das artes. Gullar em seus caminhos e descaminhos, vê cada vez menos importante a sua contribuição para a poesia brasileira, mas não perde a pose, a arrogância e o ódio que nutre, principalmente por Augusto de Campos, poeta incomparavelmente melhor que ele. Dos últimos livros de Gullar, não li um poema que fosse bom por inteiro. A sua tão aguardada publicação do poema FORMIGUEIRO, da fase concretista (neste ano se comemoram os 50 anos da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta) revelou uma peça fraca, mesmo para a época em que foi concebida (ele fez modificacões para a tal edição). Concretistas: extraordinários poetas, inventores.
            Outro excepcional valor brasileiro - ítalo-brasileiro, melhor dizendo -  foi Alfredo Volpi, de quem se comemoram os 110 anos de nascimento (Lucca, Itália, 1896). O MAM-SP apresenta dele uma bela retrospectiva (já vi melhor, no próprio MAM) com curadoria de Olívio Tavares de Araújo. Obras que ainda não haviam sido mostradas surpreenderam. Quanta inteligência artística! De qualquer modo, o conjunto é maravilhoso e esta é uma bela chance para se ter uma idéia da grandeza da obra do pintor do Cambuci.
            Geralmente, só o tempo revela os valores maiores. Via de regra, os que mais freqüentam as mídias são os que fatalmente serão relegados ao esquecimento. "O futuro lhe fará justiça!", diria, com toda a sutil ambigüidade, a pitonisa. O importante não é ser badalado ou vendido. Construir uma obra com consciência de linguagem é o caminho, porém poucos chegarão ao nível do extraordinário. Pouquíssimos. OMAR KHOURI



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