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POESIA
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AINDA EM TORNO DA POESIA

             

            Algo que ainda não fiz neste espaço: trazer definições de Poesia, várias, o que seria, no mínimo, interessante para efeitos de teste, discussão, sondagem, para sabermos em que medida elas cobrem o fenômeno poético.
            Assim teríamos, por exemplo, de Ezra Pound:  ..."poesia, a mais condensada forma de expressão verbal". De Fernando Pessoa:  "A poesia é a emoção expressa em ritmo através do pensamento"... De Paul Valéry, que coloca a poesia como o oscilar entre o som e o sentido.
            Muito interessantes, mormente porque afirmações feitas por grandes poetas: também, porque tocam fundo na questão, mas não a esgotam. Sempre e sempre, outras tentativas de definição serão bem vindas.
            Agora, tomemos, de dicionário etimológico, alguns verbetes: POESIA -  Do grego póiesis, ação de fazer alguma coisa, pelo lat. poese, e suf. it. Em Heródoto ainda significava feitio; depois aparece como obra poética. POETA  -  Do   gr.   poietés,   o   que   faz,   o   autor;   pelo lat. poeta.  Desde Hesíodo e Píndaro significa  o que  faz versos ( ... ).  A base do  vocábulo grego é o  ático  poéo  por  poiéo, fazer. POEMA  -  Do gr.  póiema, o que se faz, pelo latim poema. Em Heródoto ainda significa trabalho manual; em Platão já era  trabalho literário. (Antenor Nascentes)
            Tais definições/explicações colaboram para a nossa ilustração, mas não contribuem para encaminhar ao esclarecimento da questão. De qualquer maneira, um saber necessário. Poderíamos percorrer obras teóricas, da Antigüidade aos nossos dias. Nos últimos 30 anos, dei conta de várias dezenas delas e percebi que algumas, em nada esclareciam sobre a questão específica da poesia, sendo, portanto, inúteis sob este aspecto; outras possuíam uma ou outra parte aproveitável, pois, além de pensarem o problema, traziam fartas exemplificações, sugestões de leituras etc. Certas obras eram por demais tendenciosas, embora inteligentes, exigindo do leitor, uma iniciação e senso crítico já formado. Por outro lado, deparei com escritos teóricos de poetas que, movidos pelo grande amor pelo afazer, aproximaram-se (teoricamente) bastante daquilo que na prática faziam mesmo. Também alguns teóricos/estudiosos que trabalharam inteligentemente e com amor a tal assunto.
            Cabe aqui, agora, antes de prosseguir na questão central, qual seja, a do poético, uma digressão sobre o que vem a ser o poeta, como ele trabalha, o que ele mobiliza para elaborar poemas.
            A arte do poeta, a POESIA, esse tipo de manifestação criativo-estética (e é bom lembrar aqui que estética, vem do grego áisthesis, que se origina do verbo aisthánomai, que significa: perceber pelos sentidos) acredito, realiza a síntese necessária de um processo dialético, que joga com o que podemos chamar de sensibilidade, por um lado, e cerebralismo, por outro. Não somente isso a que chamamos poesia, mas também toda e qualquer manifestação artística realiza tal processo. Daí, num poema, o que é captado e selecionado pela sensibilidade, passa pelo crivo do racional, do puramente cerebral, do controle daquele que faz, o fazedor, o maker, o poietés.
            Acredito: sempre há algo que escapa ao controle do poeta, senão não haveria tanta riqueza de interpretações, de maneiras de receber uma mesma peça, embora isso também dependa do repertório e sensibilidade daquele que recebe. A arte, em geral, e a poesia, em particular, evidenciam, ao lado de todo um labor de feitura, da elaboração, um lado de não- racionalidade, o qual está sempre presente, como que espécie de gradação de formas e sub-formas que sugerem (mesmo que não se perceba de imediato) conteúdos não-verbais e não convencionalizados.   Mesmo   um   poema   concreto   da    fase   dita "ortodoxa",   apresenta,   evidencia  uma  certa   não-racionalidade:   a própria opção pelo e em prol do fazer poético - coisa inútil - é prova disso...

 

            Inevitavelmente, surge em minha mente o célebre escrito de Edgar Allan Poe. "A filosofia da composição", em que, expondo passo a passo o como concebeu e executou o poema "O Corvo" diz não ter deixado que nada escapasse ao seu controle: "É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático".
            Esse tipo de pensamento, importantíssimo, veio ajudar a combater a persistência de certas idéias que, comprovadamente, vinham desde Platão, que pintava o poeta, nesse particular, como alguém que "recebia", sem saber, na verdade, o que fazia (vide Ion e a Defesa de Sócrates): captava o poema por inspiração divina. Vejamos um trecho da Defesa de Sócrates (Apologia de Sócrates): (...) "Depois dos políticos, fui  ter  com  os  poetas,   tanto  os  autores  de tragédias, como os ditirambos e outros, na esperança de aí me apanhar em flagrante inferioridade cultural. Levando em mãos as  obras em que pareciam ter posto o máximo de sua capacidade, interrogava-os minuciosamente sobre o que diziam para ir, ao mesmo tempo, aprendendo deles alguma coisa. Pois bem senhores, coro de vos dizer  a verdade, mas é preciso. A bem dizer, quase todos os circunstantes poderiam falar melhor que eles próprios sobre as obras que eles   compuseram. Assim, logo acabei compreendendo que tampouco os poetas compunham suas obras por sabedoria, mas por dom natural, em estado de inspiração, como os adivinhos e profetas. Estes também dizem muitas belezas,  sem nada saber do que dizem; o mesmo, apurei, se dá com os poetas"(...).
            O que depreendemos disso, é a rivalidade plantada, a partir do surgimento do chamado "pensamento racional" com os gregos, entre filósofos e poetas, no que diz respeito ao domínio da linguagem, mais especificamente, ao domínio/manipulação do código verbal. Os poetas precederam os filósofos - os primeiros filósofos, lidando com as palavras, visando a explicar o mundo, fizeram uso de recursos ditos "poéticos",  Platão, distante dos pioneiros, pode ser considerado filósofo-poeta: valeu-se daqueles recursos em seus escritos, o que os tornou mais belos (pudemos notar isso num trecho do Banquete, que trabalhei, no original com colegas  e professor, em curso de Língua Grega). Francisco Achcar trata a questão Platão/Poesia - o papel da poesia na formação dos gregos e a atitude de Platão frente a isso, de maneira muito clara, em artigo na REVISTA USP 8. Não é única a atitude de Platão (República.  ...Livro X); Achcar lembra o fragmento 42 de Heráclito, no qual temos: "Homero merecia ser expulso das competições e açoitado, assim como Arquiloco" (tradução de Francisco Achcar). Quão importante havia sido - Platão o sabia, mais que ninguém em sua época - o papel da poesia na formação dos helenos...
            Retomando: o poeta, como queria Poe, é possuidor de um cérebro e faz uso dele, só que, penso, o acaso interfere e até beneficia, podendo ser incorporado (e isto, não apenas hoje, época em que os criadores têm feito uso do acaso programaticamente): intuição, é intuição informada: inspiração é momento propício, momento de facilidade para a execução, em que as coisas fluem (como diriam Paul Valéry e Manuel Bandeira).

            Tomo aqui as falas de quatro grandes poetas (algumas considerações preciosas), dois dos quais, brasileiros: Fernando Pessoa, Paul Valéry, João Cabral de Melo Neto e Haroldo de Campos.
            Fernando Pessoa: "A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção, mas no momento da recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem evidentemente, porque não é de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora, a existência intelectual de uma emoção é a sua existência na inteligência - isto é, na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção" ....
            Paul Valéry: "Mas todos os poetas verdadeiros são necessariamente críticos de primeira ordem". (....) “Todo poeta verdadeiro é muito mais capaz do que se pensa geralmente de raciocínio exato e de pensamento abstrato".(....) "observei com a mesma freqüência com que trabalhei como poeta que meu trabalho exigia de mim não apenas aquela presença do universo poético do qual falei, mas também uma quantidade de reflexões, de decisões, de escolhas e combinações sem as quais todos os dons  possíveis da  Musa  ou  do Acaso continuariam sendo materiais preciosos em um canteiro de obras sem arquiteto".
            João Cabral de Melo Neto: "Eu tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem que se dirige à inteligência, mas através dos sentidos".
            Haroldo de Campos: "Poesia para mim é uma confluência dialética de racionalismo e sensibilidade, que se decanta num certo momento".
            Na brilhante análise que fez da última estrofe do poema "O Corvo", de Poe, Roman Jakobson, observando o lance RaVeN NeVeR, mostrou algo que escapou da programação do poeta, embora conforme àquela.
            Na disputa real, que dura séculos, para apurar quem diz mais e melhor, fico com os poetas, assim como alguns pensadores da linguagem. Os poetas são aqueles que, fazendo uso de palavras, conseguem mais com menos. Reportemo-nos a Jakobson: "Somente quando morre uma época, quando se dissolve a estreita interdependência de seus diversos componentes, somente então é que, no  famoso  cemitério   da  História, erguem-se,  acima   de  toda  sorte  de  velharias  arqueológicas os 'monumentos' poéticos".
            Poemas são como jóias que, de uma maneira ou outra, sobrevivem aos contextos em que foram produzidos, mantendo uma beleza apreciável, apesar das diferentes visões das diferentes épocas.
            T.S. Eliot: "O que mais importa, digamos, ao ler uma ode de Safo, não é que me imagine  numa  ilha  grega  há 2500 anos. O que importa é a experiência, que é a mesma de todos os seres humanos de diferentes séculos e idiomas, capazes de apreciar poesia: é acentelha que consegue atravessar esses 2500 anos". E, apontando o papel da crítica: "Portanto, o crítico a quem sou mais  agradecido   é aquele que consegue fazer-me ver algo que eu jamais vira antes ou vira apenas com os olhos nublados de preconceitos, aquele que me coloca frente a isso, para depois deixar-me a sós. Daí em diante devo confiar apenas em minha própria sensibilidade,inteligência e capacidade de discernimento".
            Não seria excessivo lembrar aqui que crítico é, em seu verdadeiro sentido, aquele que sabe discernir, separar (do verbo grego krino: separar ....).
            O poema - feitura, fatura, fazimento - sendo o lugar onde se manifesta, preferencialmente, aquilo a que chamamos poesia (o  fenômeno  poético) é, como procurei  deixar claro, o resultado de um processo dialético em que entram em jogo cerebralismo (racionalidade) e sensibilidade (que no poema é inseparável de cerebralismo e vice-versa). O que há de sensibilidade no poema é que impossibilita - a não ser que possibilite - em se seguindo fórmulas, receitas, que se consigam bons resultados. Um poema é tanto melhor, quanto mais conseguir deixar a impressão ou certeza de que se trata de um todo, uma completude, algo inteiro, em que nada falta, nada sobra; de que nele, tudo o que há é estrutural, nada tendo que se apare ou acrescente, nada a modificar; um todo singular. Paul Valéry: ..."Um poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético através das palavras. O efeito dessa máquina é incerto, pois nada é garantido em matéria de ação sobre nossos espíritos. Mas  qualquer  que seja  o resultado e sua incerteza, a construção da máquina exige a solução de muitos problemas. (...) a duração da composição de um poema mesmo bem curto, pode absorver anos, enquanto  a  ação  do poema em um leitor será realizada em alguns minutos"…
            Como já disse anteriormente, a mente e os sentidos devem estar preparados para que se possam fruir essas preciosidades: poemas.
OMAR KHOURI

 

 


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