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A SÃO PAULO DOS MODERNISTAS (FINADOS)
Nesse 2 de novembro, a chuva me impediu de visitar cemitérios de São Paulo, coisa que sempre faço quando não posso ir a Pirajuí visitar os meus mortinhos. Invariavelmente chove nesse dia, de par com um calor quase insuportável que, em plena primavera, chega a parecer mais-que-verão.
A ida ao cemitério me traz um certo conforto (e sei que isto não é igual para todos, pois há crenças outras, até mais bonitas com relação àqueles que se foram), como que me aproxima dos que trago em pensamento e justo num lugar onde foram depositados os seus restos… mortais. A proximidade da matéria, um quase nada que ao pó tornou, me propicia pensamentos e me alerta para a fugacidade da existência: tudo passa e é assim que as coisas são. A vida segue o seu curso e nem tudo precisa ser tristeza no dia estabelecido para os meus (e de todos) finados insubstituíveis (enquanto houver alguém para evocar-lhes a memória…).
Dos muitos cemitérios de São Paulo, um se destaca pela fama de conter restos mortais de gente famosa (não nos esqueçamos de que a morte nivela todos… por baixo): é o da Consolação. Em verdade, há mais dois cemitérios contíguos, cujas entradas se situam na Rua Sergipe: o da Venerável Ordem Terceira do Carmo e o dos Protestantes.
No Cemitério da Consolação, que é do tipo italiano, com toda aquela profusão de estátuas, encontram-se verdadeiros monumentos: pelas dimensões e também pelo fato de escultores famosos terem lá alguns de seus trabalhos, como túmulo de Dona Olívia Guedes Penteado, com um complexo escultórico de Victor Brecheret. Porém, o dos Matarazzo é o mais grandiloqüente, dando uma medida da riqueza em que vivia a família: assim na vida como na morte… Tal túmulo é uma projeção da magnífica casa Matarazzo - hoje inexistente - na Avenida Paulista (da mesma forma, a pirâmide, túmulo gigantesco, dava uma medida do poder exercido em vida pelo faraó). Os Jafet também dão uma medida do seu grande poder, em mais de um jazigo na Consolação e suas antigas residências se encontram inteiras - porém em poder de outras gentes - na rua Bom Pastor, bairro do Ipiranga. O túmulo da Marquesa de Santos é simples, porém, sempre impecavelmente conservado, com flores novas e em qualquer época do ano, sendo o serviço executado pela própria administração do local (parece que foi a Marquesa quem doou o terreno para que se tornasse uma necrópole).
Mas, das vezes em que estive no Cemitério da Consolação - cuja muralha já impressiona desde o lado de fora - salvo uma ou outra vez, foi para visitar os túmulos de alguns modernistas que me são caros. A começar por Tarsila do Amaral, que cheguei a conhecer pessoalmente e que faleceu em janeiro de 1973. Daí, Oswald de Andrade, morto em 1954, cujo túmulo (da família), à rua 17, abriga os restos de Daisy, com quem ele se havia casado in extremis. Curioso é que, ao lado, há o jazido da família Serafim del Grande, o que faz lembrar o Serafim Ponte Grande, de Oswald. Na mesma rua, porém não tão próximo, o túmulo de Mário de Andrade (morto em 1945), o autor do MACUNAÍMA. Anita Malfatti, que foi quem deu o pontapé inicial para a eclosão do Movimento Modernista no Brasil, morta em 1964, está enterrada no Cemitério dos Protestantes, no jazigo dos Krugg - Anita era Krugg por parte de mãe: família protestante de origem alemã, com passagem pelos EUA, antes da chegada ao Brasil (lembre-se que na formação da artista são de fundamental importância suas estadas na Alemanha e nos Estados Unidos; neste último é que realizou o melhor de sua obra).
Isto tudo me faz lembrar Marcel Duchamp, que até para as coisas da morte utilizava expedientes de humor: determinou que em seu túmulo fosse gravado o epitáfio: "Aliás, são sempre os outros que morrem". O que para um passante não deixará de ser verdade!
Pensando em tudo isto e considerando uma passagem da ODISSÉIA em que, em sua cerimônia de evocação dos mortos, Odisseu (Ulisses) ouve de de Aquiles-sombra, que ele preferiria ser o mais simples dentre os vivos que estar ali no Reino de Hades, é que eu elaborei um epitáfio, também para ser gravado em lápide:
Ó VOS QUE LAMENTAIS DAÍ DO ALTO DE VOSSA EFEMERIDADE: SABEI QUE NÓS (CÁ EMBAIXO) PAGAMOS O PREÇO DA ETERNIDADE.
É para ninguém ignorar nem esquecer, bastando que tenha lido uma única vez. Por enquanto a ordem é viver a vida. Vivê-la bem. Que isto tudo é passagem.
OMAR KHOURI
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