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ROGÉRIO DUPRAT : ERA UMA VEZ

             

            Hoje pela manhã (27 out. 2006) li no Estadão que o maestro-arranjador Rogério Duprat havia morrido (ontem), aos 74 anos, vítima do mal-de-Alzheimer e de um câncer na bexiga, tendo passado os últimos três meses em leito de hospital. Na FAAP, alunos me disseram que a notícia já havia sido dada no Jornal Nacional, da Globo. A informação deixou-me um tanto perplexo, já que nada sabia dele há tempos, a não ser de um CD que sairia com raridades de seu trabalho de arranjador, de par com a coleção MUTANTES, versão CD.
            Embora não o tivesse conhecido mais de perto - só o vi pessoalmente umas quatro ou cinco vezes e em situações diversas - ele foi uma das pessoas que mais admirei no Brasil, principalmente pelo arranjador genial que foi da Tropicália, movimento musical (e comportamental) que floresceu na cidade de São Paulo, a partir da segunda metade dos anos 60 do século passado, tendo como protagonistas gentes de fora, principalmente da Bahia: Caetano Veloso, Giberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, mas também da terra paulista, como os componentes dos Mutantes: Sérgio e Arnaldo, os  irmãos Baptista e Rita Lee Jones. Rogério Duprat era carioca, mas adotou ou foi adotado por São Paulo e durante muitos anos viveu nos arredores da Paulicéia.
            O papel de Rogério Duprat como arranjador e maestro da Tropicália, embora não tenha sido o único, foi fundamental: deu a "cara" ao movimento,  com seus arranjos sensacionais, que denotam conhecimento profundo de música (ele teve formação erudita e foi também compositor e instrumentista: tocava violoncelo) e que receberam grande influência dos arranjos das canções dos Beatles (por George Martin), mas que chegaram a ser mais arrojados (e Rita Lee já disse isto), posto que adentravam o universo da paródia burlesca (vejam-se os LPs TROPICALIA, em cuja capa Duprat aparece entre outros integrantes do movimento, sentado, segurando um penico, os dos Mutantes e um certo disco de Nara Leão: verdadeiras jóias da música popular brasileira).
            Eu já via Duprat nos progamas de TV - era o Tempo dos Festivais -  em discos, em jornais e revistas, mas inesquecível mesmo foi a sua aparição num programa abominável, coisa de Carlos Manga, chamado "Quem tem medo da verdade?" Era um programa em que os convidados eram vítimas de perguntas-grosserias de toda a espécie, por um corpo de jurados de qualidade variada. E Duprat, na berlinda, nada respondia, apenas, dadaisticamente, mostrava tabuletas com respostas lacônicas e até nonsense. Como era de praxe, a vítima tinha direito a um advogado de defesa e o dele foi Décio Pignatari, que flagrei num discurso brilhante, que enaltecia o músico e a sua genial criatividade.
            Em outra ocasião especial, eu - levado por Paulo Miranda - o vi num espetáculo neo-dada, no Teatro Ruth Escobar (Teatro Galpão), em inícios de 1970. Chamou-se PLUG o evento e poucos foram os que o viram: já era algo multimídia, com representações do tipo teatral, filme mais que underground, audiofotonovela, a risada de Hebe Camargo repetida várias vezes, performances várias. Era a época dos happenings e aquilo tudo me impressionou bastante, ficando gravado em minha memória.
            Em 1977, em casa de Décio Pignatari, nas Perdizes, numa recepção que houve em função da publicação de seu livro POESIA POIS É POESIA,  pela Duas Cidades, vi Rogério Duprat, a quem fui apresentado e lhe passei, como a outros, um exemplar de ARTÉRIA 2 (pronta em 76, lançada em 77), que ele examinou com descrença. Depois, Décio me falou sobre o seu (de Duprat) ceticismo com relação às artes, porém destacando o seu valor, sua grandeza, não adotando para si, mas respeitando a postura do músico.
            Em 1985, quando John Cage esteve em São Paulo, por ocasião da XVIII Bienal, foi lançado o seu livro  DE SEGUNDA A UM ANO, que havia sido traduzido por Duprat, muitos anos antes, tendo tido, o texto, revisão de Augusto de Campos, que também o prefaciou. Colhi autógrafos, na ocasião: de Cage, Augusto de Campos (que foi quem mais divulgou o trabalho do  músico estadunidense no Brasil) e de Duprat, que milagrosamente esteve presente na ocasião. Era o dia 5 de outubro. No 3º andar do prédio da Bienal, auditório do MAC-USP, Anna Maria Kieffer e Theophil Maier se apresentaram com obras de Cage e de Augusto de Campos. Eu, com Décio Pignatari, assistíamos ao espetáculo, uma fileira atrás da de Cage, que se portou elegantemente, com toda aquela paciência zen que o caracterizava. "Cage, agora sem barba, até parece uma tia velha", disparou Décio que, ao mesmo tempo, deplorava a performance que ocorria no palco.
            Recentemente, uma aluna minha da FAAP, que cursava cinema, fez um documentário sobre Duprat e eu lhe contei muitas coisas sobre ele e ela fez o mesmo comigo, inclusive me revelando ser Duprat primo do cineasta Válter Hugo Khouri, coisa que eu nunca havia sabido. Se não me engano, Duprat  trabalhou em algumas trilhas sonoras de filmes seus.
            Seu contato com com os concretistas se deu na fase da revista INVENÇÃO - anos 60 - em que, com outros músicos de sua geração, assumiu compromissos musicais de caráter experimental-inventivo. Notoriedade, porém, obteve como participante do Tropicalismo, por meio de seus arranjos, cuja importância já está sendo avaliada há algum tempo.
            Duprat, há muitos anos, havia se retirado do ambiente musical, no qual passou a ver graça-nenhuma e, ironicamente, encaminhou-se à surdez, o que mostrou a sua radicalidade, como observou sarcasticamente um amigo comum. Vai Duprat, fica o seu mais-que-excelente trabalho de arranjador. Um grande trabalho!
OMAR KHOURI

 


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